Um dos bordões que deveriam descredenciar a candidata do PT nestas eleições é a de que ela seria "um poste". Confesso que demorei um pouco para entender o que seria "um poste". Estava mais acostumada com figuras como o boneco de ventríloco, ou como a marionete. Aliás, marionete não teria emplacado mais? Afinal, postes não falam. E Dilma fala. Marionetes e bonecos de ventrílocos representam papéis estipulados por outrem. A dissolução deste estigma wanna-be (ao menos para o público que tem o mínimo de empatia com as transformações que estão se dando no Brasil e com as mulheres) aconteceu, na minha opinião, em parte no horário político eleitoral, quando, acertadamente na minha opinião, optou-se por não engessar demais a candidata. Sequer os "achismos" dela foram editados. Editados! Quer dizer, no vídeo editado você pode recortar os candidatos, assim como os fatos, a seu bel-prazer. E a
opção não foi esta. Aquela história de "acho isto, acho aquilo" foi a primeira que me irritou. Parecia-me um sinal de insegurança onde não poderia haver alguma. Perdurou por um tempo... e foi embora. Esvaneceu-se em meio à impressão de sinceridade e à identificação com o projeto político. Acredito que se eu tivesse identificação com a proposta política de Serra veria o seu sorriso aterrorizador apenas como um charme excêntrico. Mas como este não é o caso... Tudo isto para falar do poste. Cadê o poste que estava aqui? Dilma acertadamente bateu na tecla que apontava a incoerência lógica do adversário, que ora a apontava como terrorista maquiavélica, ora como objeto inanimado. Não teria sido melhor pintá-la como "a sonsinha da guerrilha"? Ou então apenas como o demônio disfarçado de gente, que manipula até o presidente Lula? Creio que a Dilma caricata talvez pudesse ter feito mais sucesso como vilã de novela. Mas os dois, ao mesmo tempo, é difícil.
É claro a incoerência proposta pela oposição tem suas raízes estruturais, por assim dizer. Qualquer mulher cai potencialmente bem no papel de vilã de novela. Bruxa destruidora de lares. Por outro lado, nunca tem autonomia suficiente, intelectual, política, a não ser, é claro, a autonomia de prejudicar os outros por puras vontades irracionais, que em nada se parecem com o desejo de poder legítimo, óbvio, natural e sacralizado do homem. Ou seja... à mulher cabe também o papel do poste. De laranja natural do projeto de algum pintudo.
É por isso que cheguei a temer, quando da súbita, bizarra e reprovável candidatura Weslian Roriz que este fosse um golpe simbólico mais do que apenas um golpe roriziano infantil. Ao expor Weslian como a eterna poste, a eterna falta de autonomia feminina, o segundo sexo, o poste sem luz, Roriz falaria "no fundo, são todas iguais e todas nos pertencem, cada uma delas a cada um de nós". Mais distante daquele momento, pude proclamar aliviada a minha paranóia. Não chegou a meu conhecimento que Weslian fosse igual a Dilma. Acredito que os detratores se encantaram mais pela Dilma destruidora de lares, e deixaram o estereótipo da dona-de-casa inepta e apendicular de lado.
Não vinha de Roriz, pouco antes e pouco depois de pleito, o ataque simbólico que eu esperava. Mas vinha do Estado de São Paulo. "Presidente 'de fato' da Argentina morre", dizia quando do falecimento de Kirchner. Fiquei pasma com a cara-de-pau do veículo. Depois do pleito: "Lula vence outra vez". Em menos de 10 dias as duas maiores mulheres da América Latina (quem sabe de sua história inteira) eram jogadas no lixo. Não era uma questão de dar a César o que é de César, enfantizando o papel de Nestor e Lula na eleição de ambas. Era um puro "vocês não existem e não tem mérito algum". Algum. Lendo o Estadão tem-se a nítida certeza de que cristina foi eleita porque havia um impedimento legal para que Nestor o fizesse, o que não foi o caso. O casal decidiu lançar a candidata, assim mesmo. No caso de Lula e Dilma, em que havia um impedimento legal, ele não lançou sua esposa Letícia, que seria certamente a Weslian da história. Mas uma mulher duas vezes ministra. Isto não parece fazer diferença para o Estado, para quem todas, afinal, são segundo sexo e ponto.
Para finalizar a questão, que não é trivial nem pouco, falo de um verdadeiro poste que tive o (des)prazer de conhecer. Ou melhor, a boneca de ventríloco, dado que discursava pelos cotovelos. Quem compartilhou comigo do ambiente político da UNICAMP na primeira metade da década que se despede em breve saberá a quem me refiro. Nomes não são necessários. Necessária é a história. De dois machinhos ególatras, carinhosamente apelidados de Trotsky e Stalin, e que elegeram "uma mulher" para vereadora da cidade de Campinas. Primeiro costuraram sua candidatura no interior do grupo que apoiava uma perspectiva de universidade que mesmo hoje, traumas políticos à parte, não abandonei. Fizeram-no da seguinte forma. Conversaram com cada qual, perguntando o que se considerava da candidatura. Não com todos, mas com a maioria. A minoria julgada menos importante teria de fato uma surpresa durante a reunião em que a questão seria 'debatida'. Mostrei-me refratária não ao projeto em si, mas à falsa democracia e ao falso respeito. Na época, procurei articular um grupo que contestasse o ignomínia do processo. Mas o grupo tinha anseios diferentes e também percorreu caminhos diferentes, estilhaçou-se sem conseguir fazer frente ao núcleo manipulador e continuar "a luta". Ou então conseguiu, à sua maneira, de certa forma recomposto tempo depois. Mas aquele não era o seu tempo, para o meu desapontamento, mas que eu tive de respeitar, porque querer "acelerar o processo" é muitas vezes o nome que se dá a estes tratoramentos em nome de algum projeto.
Por que o "poste" feminino era o sonho de consumo do machinho maquiavélico (na sua acepção menos nobre)? Porque poderia explorar sua imagem política e até mesmo sexual (a candidata foi visivelmente sexualizada durante a campanha) sem ônus próprio. Porque dava uma carinha de progressismo (vejam, uma jovem líder mulher de origem pobre!) a um projeto que se autointitulava de esquerda, mas aquela esquerda que não acha que a igualdade se forja no processo nem que vale tanto quanto para as mulheres. Porque em caso de sucesso político, se viria com o poder nas mãos. Mas no caso de fracasso poderia ir vampirar outro poste. A mulher em questão não era desprovida de méritos. Mas eram os méritos típicos das mulheres tradicionais: a cooperação irrestrita que sinaliza a subserviência, a tomada de projeto alheio como se fosse seu, e o quase orgulho em exercer estas funções.
Alguma moral da história? Apenas indicações. Não recusemos bons quadros mulheres só porque bizarramente representam uma exceção em uma estrutura dominada por homens (o número de 90% de parlamentares do sexo masculino indica isto). Mas o fato de a estrutura ainda ser tão desfavorável faz com que haja mulheres de várias procedências no jogo político. Mulheres neste caso representam não uma unidade e uma identidade, mas o avesso uma da outra. Encarnam, cada qual, uma das facetas das contradições do processo lento, conturbado e cheio de idas e voltas da nossa emancipação.
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