sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Além do texto e as imagens abstratas

   Há bastante tempo um amigo e eu fazíamos um exercício lúdico que consistia no seguinte: escutava-se um trecho de música erudita e descrevia-se a mesma por meio de cores. Naquele pequeno universo de duas pessoas havia uma alta correspondência entre as cores percebidas por um e por outro. Já na faculdade submeti meus amigos a uma outra experiência, que buscava relacionar fonemas com cores. Os resultados aí foram menos convergentes. Ainda assim o meu namorado conseguiu criar uma teoria geral que via uma coerência no resultado. Eu não tinha um blog, não guardei a experiência nem as conclusões. Uma pena. 
   A visualização de elementos não visíveis sempre me fascinou. Diz-se que Einstein teria visto uma imagem quando teve o estalo que o fez descobrir, ou "ver", a teoria da relatividade. Não sei confirmar se isto faz parte do folclore em torno do gênio, mas me parece plausível. 
Quando lia livros de antropologia, minha cabeça se povoava de imagens. Imagens abstratas, e não quaisquer imagens de fotográficas ou fílmicas de "primitivos" encenando este ou aquele ritual. 

  Antes de saber que Edmund Leach era engenheiro, já enxergava o Sistemas Políticos da Alta Birmânia como uma espécie de complexa rede de encanamentos. Crime e Costume na Sociedade Selvagem me parece basicamente um livro bicolor. Tons de azul e de vermelho, talvez. As Técnicas do Corpo me parece feito de finíssimos grãos de areia. 
   Estas impressões, no meu caso, nascem quando tenho o tempo e a calma disponível para deixar reverberar o texto além texto, além do sentido imediato que cada frase transmite, semanticamente. Talvez, e sublinho este talvez, porque pode ser só maluquice minha, estas impressões captem padrões ao longo do texto, talvez algo como uma frequência ou modelo a partir do qual se escreveu. Ah, quando eu estava com os sentidos bem abertos também começava a ouvir música lendo certos textos. Tudo isto foi diminuindo com a crescente racionalização da vida. 
  Isto que se vê ou escuta involuntariamente para além do texto me lembra da atenção flutuante, princípio da psicanálise que aprendi com a professora Amnéris Maroni. O texto tem tantas camadas e uma delas é esta da impressão global, que pode ser condensada em uma imagem ou talvez um som. Para a lista dos meus projetos malucos que nunca serão realizados: ler textos clássicos buscando as cores e imagens ocultas, e materializá-las num desenho ou pintura. 

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Dilma não pode ter um orgasmo


Cara, a Dilma trabalha pra valer e disto nem direita nem esquerda duvidam. Ela podia ter uma noite mais relaxante um dia né? Ter um orgasmo acompanhada, não sei qual é a preferência dela no momento. Mas daí eu penso no monitoramento total da vida sexual e afetiva da Marta Suplicy. A Marta trocou uma relação hétero estável por outra. E ela detinha poder. Uma mulher que detém poder público e livre-arbítrio sobre o seu corpo. É o pesadelo machista! É demais além da conta. Estes dias alguém definiu a Marta como... "aquela piriguete" (!) 
Assim eu fico imaginando uma comédia pastelão do pior estilo estrelando Steve Martin quando penso nas peripécias que Dilma teria que fazer para ter uma bela noite acompanhada. Trazer o cara por um túnel escavado? Mandar disfarçar o cara de jardineiro pra agarrar? Já imaginou uma mulher madura, que além de primeira presidenta resolvesse ter uma relação casual?  Ou começar a namorar, assim, no meio do mandato? Não Dilma. Não dá. Dos políticos homens, estilo Aécio, se toleram violências sexuais, drogas, esquemas de prostituição. Mas você, no poder, tem que ser freira. 
E tá aí minha sugestão para filmar o pastelão ridículo que cairia como uma luva para retratar um pastelão ridículo da realidade. Dilma, enquanto você tiver alguma pretensão política, terá que contar com a Agência Nacional de Inteligência para ter um orgasmo acompanhada.  Boa noite. E boa sorte. 

domingo, 7 de agosto de 2011

Por que Arendt não era feminista?

ou... O intelecto feminino




Uma questão que cultivo há algum tempo é por que uma mente brilhante como a de Hannah Arendt não via sentido no feminismo. Ninguém - na minha opinião - viu como Arendt em toda a sua incrível complexidade, ambiguidade e circunstancialidade (acrescente todos os "ades") a condição judaica como ela. Quando penso na condição feminina eu, que sou mais versada na judia alemã do que em Beauvoir, sempre encontro paralelos que me parecem iluminados entre a condição judaica por ela retratada, e a condição feminina por mim vivida e observada . Ou seja, uma pessoa não-feminista é minha mestra em pensar minha condição. Claro, quem pode estar enganada sou eu. Mas vou lançar uma hipótese aqui, que teria que ser testada depois de leitura e reflexão. É algo meio intuitivo, que mistura o que apreendo da filósofa que não queria ser filósofa (e da não-feminista que tinha uma prática pra lá de feminista) e da minha vivência.

Às vezes, ladies and gentlemen, acreditamos nós mulheres que somos iguais aos homens. Às vezes acreditamos nisto por longo período, às vezes só em determinada circunstância. No entanto, como se pode facilmente provar por A+B, somos socialmente inferiores. Ou seja, quando nos cremos iguais, estamos inevitavelmente enganadas. É uma ilusão, não é?

E no que se baseia então este sentimento às vezes tão persistente e palpável?
Arrisco dizer que nas nossas vivências, às vezes durante curtos momentos, há igualdade, dentro de alguma redoma protegida pela sociedade maior. Naquele lugar, naquele momento, as regras do jogo são específicas. Grandes amigos de rendas diferentes lidam em muitas circunstâncias com esta diferença. Mas existem momentos em que eles são iguais. Podem ser fortuitos, mas são verdadeiros. No momento seguinte, tudo pode ser diferente. Mas naquele dado momento, são iguais. E este momento pode fazer o "socialmente inferior", ter clara noção que sua inferioridade não é pessoal.

Vejo dois traços na trajetória clássica para uma mulher se tornar feminista. Uma é sofrer na mão de homens/ estruturas machistas. E a outra é ter momentos de igualdade, mais ilusórios ou mais verdadeiros. Porque quem apenas sofre as estruturas, penso ter mais dificuldades para dizer a si mesmo que aquilo não é natural. Que não tem que ser assim. Que pode ser diferente. É a contradição que nos abre os olhos. Mulheres que são direto e reto tratadas mal são, na minha apreciação, aquelas mulheres machistas. Que regulam as outras pelo tratamento que lhes foi dado. Que não tem condições de ver que pode ser diferente. Para elas só existe crescer e vencer dentro das regras do machismo.

Apesar da massiva propaganda anti-semita, Arendt nunca se achou menos capaz. Muitos judeus sofreram com dúvidas a respeito de si mesmos, mas ela nunca balançou. Apesar de mulher num ambiente então ainda muito mais machista e predominantemente masculino do que hoje, ela jamais duvidou de si. Ela tinha a tranquilidade consigo mesma para aceitar ou rejeitar aspectos da teoria heideggeriana, Heidegger, o homem ariano. O homem ariano que foi um crápula com ela. E ela foi capaz da apreciação mais racional e isenta da obra dele. Por quê? Porque sua na intimidade nunca se deixou intimidar. A ameaça nunca era intelectual. Somente física. No ambiente ilustrado em que ela nasceu a judia Rosa Luxemburgo era A intelectual mais prezada, entre homens e mulheres. Arendt cresceu  olhando para o retrato dela.  Acabou tomando a condição e o destino judaicos como uma questão norteadora de seu desenvolvimento intelectual, pois a realidade a confrontou amargamente com isto.

E quanto a ser mulher? Talvez Arendt tenha projetado a sua segurança psicológica que, sabemos, é fruto da sua personalidade e do ambiente ilustrado em que viveu para o conjunto das mulheres, cuja grande maioria tinham tido experiências muito diversas da dela. Se ela jamais foi impedida de pensar "como um homem", se jamais duvidou da sua genialidade frente ao intelecto de um homem, por ter uma segurança de aço, porque as outras deveriam se acovardar? Se elas não estavam fisicamente ameaçadas (na leitura dela)? Querer para ela, neste caso, é poder. Uma pena. Ao mesmo tempo um certo consolo. Nem Arendt é perfeita...

Mas por que discorro sobre tudo isto? Porque há feministas que me dizem que não se deve dar mais crédito a um homem feminista do que a uma mulher feminista. Que esta seria uma atitude anti-feminista. Concordo que a auto-avaliação neste sentido é sempre bem-vinda, dado que a sociedade nos ensina a dar mais crédito a homens, e isto pode ser algo meio inconsciente. Concordo que a vivência sempre separa um homem de uma mulher.

Porém não tenho medo de, me auto-avaliando de vez em quando, dar razão a um homem em detrimento de uma mulher. Porque estou imbuída da confiança de igualdade de condições intelectuais, imbuída da confiança no meu intelecto. Há momentos em que eu, a mulher feminista, ele, o homem feminista e ela, a outra mulher feminista, somos iguais. E eu sou tão igual que posso julgar qualquer uma das três opiniões como a melhor. Posso pensar e mudar de ideia. A favor de cada um de nós. Confio, em última instância, no meu julgamento. Que é o julgamento de uma mulher. E isto, ladies and gentlemen, é uma atitude feminista. Hannah, você nunca se intimidou diante de um homem, a ponto de poder lhe dar razão. Você é um ícone do pensamento moderno. Você se importa, aí no seu túmulo, que eu re-signifique o seu exemplo como uma prática feminista? Acho que não.