quarta-feira, 6 de abril de 2011

A "cultura" no jornal gringo

Sabe Lua-de-Mel? Quando tudo parece bom? As vezes penso que so estou gostando tanto de ler "die Zeit", uma publicacao da esquerda moderada na Alemanha, porque nao sei o suficiente sobre o pais para perceber os podres. Mas enquanto dura a fase do encantamento quero mostrar minha satisfacao com um tema que, ao ser tratado pela imprensa tupiniquim, fazia meus professores de antropologia, junto conosco, os alunos, revirarem os olhinhos. Um professor africanista dizia com razao que a Africa so eh explicada pelas "tribos", "aquilo ali eh uma tribalizacao". Gosto de conversar com leitores comuns do Estado ou da Folha e perguntar a eles sobre suas impressoes dos conflitos na Africa (e algumas regioes da Asia) e o que fica mesmo eh este mote, o mote do "tribalismo", onde tem tribalismo, tem confusao, ja viu, entao eh isto, esta ai a explicacao. Posso estar equivocada, mas raramente antropologos sao chamados a esclarecer questoes afins, isto porque hoje contamos com uma academia de interesses bem diversificados e em vias de se diversificar cada vez mais (Manuela Carneiro da Cunha e Roberto da Matta sao as celebridades excepcionais que confirmam a regra).  E, po, nos queremos ser socialmente uteis tambem, ainda mais se for em substituicao a um monte de abrobrinhas. Dois artigos da Zeit me impressionaram positivamente no sentido do dialogo com a antropologia atual, tornando-a acessivel, entrelacando-a com algum evento atual, de forma a enriquecer os seus sentidos.

O primeiro eh o artigo intitulado "Existe algo como uma German angst?", onde Angst eh a palavra para medo em alemao, mas esta numa expressao em ingles que se vale do original. O artigo desmonta a retorica direitosa que argumenta, no rastro da tragedia de Fukushima, que os alemaes so estariam dando porcentagens tao altas ao Partido Verde nas pesquisas atuais de intencao de votos por serem refens deste bichinho ai, a incrivel "German angst". Esta forma exclusivamente germanica do medo estaria intrisecamentre relacionada com uma altissima aversao ao risco, que resvala na histeria coletiva. Ora, argumenta pacientemente o articulista da Zeit, a imprensa na Alemanha tem estimulado o alarmismo. Assim como em tantos outros paises onde alarmismo vende. Ora, as pilulas de iodo para combater os efeitos da radiacao sumiram das prateleiras, assim como na China e nos EUA. Em qualquer um destes paises hipocondriacos assustados dao sozinhos conta do estoque de pilulas de iodo. Em ultimo lugar, a aversao ao risco seria uma exotica caracteristica nacional alema, como propaga uma
jornalista ianque? Entao o correto eh todo mundo hipotecar suas casas sem nenhuma aversao ao risco, como nos EUA?



O conceito (se tanto) de "German Angst" se assemelha muito a uma antropologia que se fazia nos anos 1940, la nos EUA. Entao se buscava descrever cada nacionalidade como um conjunto de caracteristicas intrinsecas, viscerais, resistentes ao tempo e repletas de poder de explicacao. Visto de hoje este conceito eh pessima antropologia. Que a direita nao se inibe de acionar, dado que os conceitos ultrapassados sao justamente os que o grande publico ja assimilou. A cultura na argumentacao de direita de torna este algo que, inquestionavel, explica todo o resto. As relacoes de poder imbricadas com o comportamento que se visa explicar, bem como com as variaveis culturais, estao convenientemente fora do modelo. E eh isto que a direita adora: naturalizar relacoes de poder de forma a torna-las invisiveis e usar alguma area do conhecimento para explicar as coisas sacrificando este aspecto. O Partido Verde tem altas intencoes de voto porque os alemaes desejam alterar o curso de sua politica, eles cansaram do lobby atomico; nada de histeria medrosa. Nao, isto nao tem nada a ver com Hitler.

O segundo artigo, que esta em consonancia com a entrevista concedida por uma nipologa alema, se pergunta "Como sentem os japoneses?". E a resposta eh simples: eles se sentem devastados, como todos nos nos sentiriamos. Eles se sentem solidarios, como muitos de nos se sentiriam. Eles tem medo, como todos nos teriamos. Ainda assim eles buscam recuperar o que eh possivel e manter a forca quando eh possivel, como em tantas tragedias humanas ja foi visto. O articulista desmonta aqui de forma muito consciente, e citando fontes inclusive (Das Ende der Exotic- "o fim do exotismo") o hiper-conceito do exotismo para explicar o outro. Sem anular as especificidades que existem na maneira japonesa de lutar pelos seus mortos, artigo e entrevista ressaltam a dor humana que esta logo ali, debaixo dos codigos especificos. Os japoneses sentem uma dor profunda ao enterrar seus mortos, mas esta dor eh expressa no plano privado e ha uma distincao forte entre o privado e o publico. Eles nao sao frios de coracao.
 

 Nao seriam os japoneses exoticos porque foram vitimas da energia atomica, e no entanto se tornaram tao dependentes dela? Bem, os japoneses ha decadas promovem a ideia da paz nuclear, e o uso como fonte de energia era visto como um uso pacifico, benefico, portanto oposto ao que sofreram em Hiroshima. Como voce se comportaria se em plena decada de 1970, durante a crise do petroleo voce estivesse numa ilha quase totalmente dependente de energia externa? Com algumas argumentacoes ja eh possivel seguir o raciocinio japones e chegar ao sentimento japones. O enigma foi embora. Nao embacou a identificacao necessaria para se perceber que as circunstancias de la se assemelham as daqui. Decisoes politicas. Decisoes economicas. Lobby atomico. E o terrivel sentimento universal de impotencia e luto diante da tragedia. Mais uma vez, boa antropologia a servico de bom jornalismo: aquela antropologia que aproxima, torna o outro compreensivel, tangivel. Contra o exotismo barato e demode, a favor da incorporacao inevitavel dos fatores de poder.