domingo, 7 de agosto de 2011

Por que Arendt não era feminista?

ou... O intelecto feminino




Uma questão que cultivo há algum tempo é por que uma mente brilhante como a de Hannah Arendt não via sentido no feminismo. Ninguém - na minha opinião - viu como Arendt em toda a sua incrível complexidade, ambiguidade e circunstancialidade (acrescente todos os "ades") a condição judaica como ela. Quando penso na condição feminina eu, que sou mais versada na judia alemã do que em Beauvoir, sempre encontro paralelos que me parecem iluminados entre a condição judaica por ela retratada, e a condição feminina por mim vivida e observada . Ou seja, uma pessoa não-feminista é minha mestra em pensar minha condição. Claro, quem pode estar enganada sou eu. Mas vou lançar uma hipótese aqui, que teria que ser testada depois de leitura e reflexão. É algo meio intuitivo, que mistura o que apreendo da filósofa que não queria ser filósofa (e da não-feminista que tinha uma prática pra lá de feminista) e da minha vivência.

Às vezes, ladies and gentlemen, acreditamos nós mulheres que somos iguais aos homens. Às vezes acreditamos nisto por longo período, às vezes só em determinada circunstância. No entanto, como se pode facilmente provar por A+B, somos socialmente inferiores. Ou seja, quando nos cremos iguais, estamos inevitavelmente enganadas. É uma ilusão, não é?

E no que se baseia então este sentimento às vezes tão persistente e palpável?
Arrisco dizer que nas nossas vivências, às vezes durante curtos momentos, há igualdade, dentro de alguma redoma protegida pela sociedade maior. Naquele lugar, naquele momento, as regras do jogo são específicas. Grandes amigos de rendas diferentes lidam em muitas circunstâncias com esta diferença. Mas existem momentos em que eles são iguais. Podem ser fortuitos, mas são verdadeiros. No momento seguinte, tudo pode ser diferente. Mas naquele dado momento, são iguais. E este momento pode fazer o "socialmente inferior", ter clara noção que sua inferioridade não é pessoal.

Vejo dois traços na trajetória clássica para uma mulher se tornar feminista. Uma é sofrer na mão de homens/ estruturas machistas. E a outra é ter momentos de igualdade, mais ilusórios ou mais verdadeiros. Porque quem apenas sofre as estruturas, penso ter mais dificuldades para dizer a si mesmo que aquilo não é natural. Que não tem que ser assim. Que pode ser diferente. É a contradição que nos abre os olhos. Mulheres que são direto e reto tratadas mal são, na minha apreciação, aquelas mulheres machistas. Que regulam as outras pelo tratamento que lhes foi dado. Que não tem condições de ver que pode ser diferente. Para elas só existe crescer e vencer dentro das regras do machismo.

Apesar da massiva propaganda anti-semita, Arendt nunca se achou menos capaz. Muitos judeus sofreram com dúvidas a respeito de si mesmos, mas ela nunca balançou. Apesar de mulher num ambiente então ainda muito mais machista e predominantemente masculino do que hoje, ela jamais duvidou de si. Ela tinha a tranquilidade consigo mesma para aceitar ou rejeitar aspectos da teoria heideggeriana, Heidegger, o homem ariano. O homem ariano que foi um crápula com ela. E ela foi capaz da apreciação mais racional e isenta da obra dele. Por quê? Porque sua na intimidade nunca se deixou intimidar. A ameaça nunca era intelectual. Somente física. No ambiente ilustrado em que ela nasceu a judia Rosa Luxemburgo era A intelectual mais prezada, entre homens e mulheres. Arendt cresceu  olhando para o retrato dela.  Acabou tomando a condição e o destino judaicos como uma questão norteadora de seu desenvolvimento intelectual, pois a realidade a confrontou amargamente com isto.

E quanto a ser mulher? Talvez Arendt tenha projetado a sua segurança psicológica que, sabemos, é fruto da sua personalidade e do ambiente ilustrado em que viveu para o conjunto das mulheres, cuja grande maioria tinham tido experiências muito diversas da dela. Se ela jamais foi impedida de pensar "como um homem", se jamais duvidou da sua genialidade frente ao intelecto de um homem, por ter uma segurança de aço, porque as outras deveriam se acovardar? Se elas não estavam fisicamente ameaçadas (na leitura dela)? Querer para ela, neste caso, é poder. Uma pena. Ao mesmo tempo um certo consolo. Nem Arendt é perfeita...

Mas por que discorro sobre tudo isto? Porque há feministas que me dizem que não se deve dar mais crédito a um homem feminista do que a uma mulher feminista. Que esta seria uma atitude anti-feminista. Concordo que a auto-avaliação neste sentido é sempre bem-vinda, dado que a sociedade nos ensina a dar mais crédito a homens, e isto pode ser algo meio inconsciente. Concordo que a vivência sempre separa um homem de uma mulher.

Porém não tenho medo de, me auto-avaliando de vez em quando, dar razão a um homem em detrimento de uma mulher. Porque estou imbuída da confiança de igualdade de condições intelectuais, imbuída da confiança no meu intelecto. Há momentos em que eu, a mulher feminista, ele, o homem feminista e ela, a outra mulher feminista, somos iguais. E eu sou tão igual que posso julgar qualquer uma das três opiniões como a melhor. Posso pensar e mudar de ideia. A favor de cada um de nós. Confio, em última instância, no meu julgamento. Que é o julgamento de uma mulher. E isto, ladies and gentlemen, é uma atitude feminista. Hannah, você nunca se intimidou diante de um homem, a ponto de poder lhe dar razão. Você é um ícone do pensamento moderno. Você se importa, aí no seu túmulo, que eu re-signifique o seu exemplo como uma prática feminista? Acho que não. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

E você, o que pensa?